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Mulheres do Digital – Lacuna ou espelho?

Mulheres do Digital – Lacuna ou espelho?

Simão Dias. Esse é o nome da cidade onde cresci e vivi até os 13 anos, no menor estado do Brasil: Sergipe. 

Antes que as perguntas apareçam, lá tinha Coca-Cola, mas não tinha McDonald’s. Tinha a igreja matriz e uma padroeira, Nossa Senhora Sant’Ana, mas não tinha shopping. Tinha o medo do chupacabra, que a gente nunca viu. E tinha o meu falecido avô paterno que me dizia que o lobisomem aparecia de vez em quando, no terreno perto da casa onde eu morava.

Lá também foi palco de muitas memórias felizes e de algumas nem tanto. E memória não é só o estado de consciência, mas tudo que tem a ver com ele, incluindo associações. Por isso, eu queria falar sobre a construção da mulher nordestina.

O que é ser uma mulher nordestina? Por muito tempo, foi ter uma lacuna em sua história, por depender da condição do outro. Vou explicar melhor. 

Nas terras da região, a masculinidade se materializa no cabra-macho, o homem que não tem medo de nada e enfrenta as adversidades do sertão. E o ser mulher? Acabou por depender da identidade masculina: “a mulher tinha que ser ‘macho’ para sobreviver aos obstáculos”, como disse Kalline Lira no artigo “Mulher Macho, sim sinhô?”

Em “A invenção do Nordeste e outras artes”, o professor Durval Albuquerque Jr. quebra o próprio imaginário que você, talvez, tenha sempre acreditado. O imaginário que romantiza o Nordeste e coloca seus nove estados a uma só imagem e semelhança: a do povo sofredor, batalhador e forte, que enfrenta a seca, mas crê que tudo vai melhorar. Claro, se mantendo em seu devido lugar, fincado em suas tradições, sem desafiar nenhum tipo de status.

E por meio da criação de um conjunto de símbolos para estabelecer uma representação cultural para o Nordeste no começo do século XX, elites intelectuais e artistas chegaram a uma ideia homogênea, recheada de memória e nostalgia. A idealização desse lugar veio de fragmentos da história, nos quais as supostas tradições populares eram a visão de poucos e traziam à tona uma sociedade patriarcal, de herança escravista e papéis sociais bem definidos. No fim das contas, um mapa é uma construção geopolítica e, como escreveu Olívia Mindêlo, “a imagem de uma região é uma construção histórica e cultural quase sempre determinada por quem não vive nela”.

Vocês, nordestinas. Mas quais nordestinas? Nordestinas de onde? 

Aqui, o regionalismo ignora recortes sociais, econômicos e de raça. A representação da mulher que nasceu em qualquer um dos nove estados da região Nordeste está no imaginário social, dentro dos arquétipos de cuidadora, da grande mãe. Os estereótipos de forte, resiliente, sofredora e submissa foram largamente disseminados na cultura através da literatura, cinema (olha o Cinema Novo aí), novelas (Senhora do Destino, Tieta e A Indomada, para citar alguns exemplos) e, claro, em campanhas publicitárias. O vínculo com o outro se dava – e em muitas situações ainda se dá -, não enquanto relação de alteridade, mas como condição e dependência para existir.

A pesquisa da Agência Heads e ONU Mulheres mostrou que 23% das propagandas ainda estereotipam a mulher, enquanto que 43% não a empoderam nem estereotipam. Em 2020, Propmark e More Grls avisaram que, apesar de 46% dos quadros de funcionários das agências de publicidade serem compostos por mulheres, apenas 10% delas ocupam cargos na presidência. 44% estão em cargos de comando e, destas, somente 4,3% são negras. Na criação, só 25% são mulheres. Dá para ver por que muitas mulheres ainda não se sentem representadas em campanhas, não é? Grande parte das histórias ainda não é contada por nós. E pouquíssimas são contadas por nós, mulheres do Nordeste.

Mas já parou para pensar que, dificilmente, campanhas nacionais retratam mulheres nordestinas em outras situações que não sejam coleções e lançamentos especiais, contexto regional ou datas sazonais e tradicionais, como São João e Carnaval? 

Um exemplo é Nestlé Ideal, de 2017. De acordo com o press release oficial, os vídeos com histórias reais “mostram como a força das mulheres nordestinas é característica e necessária, e como o produto as auxilia na hora de enfrentar desafios e lutas diárias, uma vez que oferece os principais nutrientes deficientes na população”. O fato de trazer histórias reais é um ponto super positivo, assim como a  locução com alguns sotaques que fazem parte da região. Mas essa força retratada destaca mais um aspecto do imaginário social em torno da mulher nordestina. Por que o nosso empoderamento se dá pela romantização do sofrimento ou em como o produto pode nos ajudar a enfrentar uma “rotina exaustiva”, que está ali por padrão? 

A celebração da mulher multitarefa também aparece na campanha regional Primorosa, da Primor, de 2015. Vemos mãe e filha cozinhando, ao som de um jingle que fala que “em casa, no trabalho, a mesma dedicação”. Segundo o press release da campanha, com uma pesquisa realizada entre mulheres nordestinas, a Bunge detectou que suas vidas estavam “mudando e evoluindo”. O trabalho fora de casa, além dos estudos, representavam o que queriam para si e o que desejavam para suas filhas. Por isso, a campanha “valoriza a mulher que faz tudo com amor e capricho para todos da casa, então faz tudo com Primor e merece reconhecimento”. E a criação da campanha? Não vi mulheres.

Em Relicário da Lindeza Nordestina, que O Boticário lançou em 2018, a mulher nordestina é celebrada em um conjunto de cenários e ritmos musicais locais, como uma homenagem especial e sazonal à beleza de ser da região. Foi produzida por uma agência de Salvador mas, ainda assim, com só uma mulher na criação. 

Para que nos enxerguemos nas propagandas, precisamos de referências. Para além disso, por que é ainda tão raro para mulheres dos nove estados do Nordeste se sentirem representadas, de forma contínua, em campanhas nacionais? 

Com mais mulheres criando e participando, mais a diversidade regional vira representatividade, ao invés de só representação. E sem homenagens, sem sazonalidades, sem lançamentos especiais. Prefiro muito mais ouvir a voz de mulheres nordestinas com seus diferentes sotaques em um filme de campanha nacional que, olha só, pode ter absolutamente nada a ver com a região. Não seria massa? 

O estereótipo desumaniza.  E a falta de representatividade em todas as camadas do processo também. Ao ser incansavelmente reproduzido, o imaginário gera aquela lacuna na história e nas estórias, que acabam não sendo contadas e criadas por nós, mulheres nordestinas. 

Para um Nordeste de tantos Nordestes e tantas mulheres, ainda faltam espelhos que possam nos refletir como imagens que vão muito além do imaginário.

Autora: Ellen Rocha, Marketing Manager, Mentora na Miami Ad School e Professora na Cria School